3. A produção social da pobreza

Interpretações reducionistas da pobreza e das desigualdades, como as citadas, terminam por ocultar o processo histórico de produção desses fenômenos e ignoram a questão social que os envolve. Aos(às) pobres são negados os direitos sociais mais básicos, como alimentação, teto, renda e trabalho, os quais é atribuição do Estado garantir. Logo, o reconhecimento dessas condições deve conduzir à estruturação de políticas sociais – das quais o Programa Bolsa Família é um exemplo – e de programas que busquem transformar essa realidade, sem incorrer em medidas meramente assistencialistas ou moralizantes.

Há diversas críticas que rotulam de assistencialistas as políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família. Contudo, se a vida é o primeiro direito do ser humano e garanti-la é o dever mais elementar do Estado, não pode ser considerado assistencialismo algo que efetive essa garantia. Nesse sentido, o Programa Bolsa Família assume como inspiração política que o reconhecimento do direito à vida é um dever público, logo, a ser traduzido em políticas de Estado, como uma responsabilidade pública, para além do tradicional assistencialismo.

Diante disso, uma importante questão a ser debatida na educação é: por que as escolas e as teorias pedagógicas atentam tão pouco para esses processos de produção social da pobreza?

 

Por vezes, os programas contra a pobreza e pela garantia dos direitos sociais são vistos como desestímulo ao esforço de cada indivíduo, ao estudo e à capacitação. A cultura escolar e docente às vezes resiste a dialogar e a fortalecer essas políticas sociais, porque sua tendência é não ver os determinantes sociais, e sim privilegiar os valores e as atitudes de cada pessoa como definidores de sua condição social. Com base em uma visão da sociedade reduzida a um somatório de indivíduos, a trajetória social é pensada pela lógica individualista escolar, ou seja, os que se esforçarem serão exitosos, e os preguiçosos serão fracassados.

 

Fotografia de Cristiano Oliveira (2009), que retrata o aglomerado Santa Lúcia, em Belo Horizonte-MG.

Porém, a presença de milhões de crianças e adolescentes extremamente pobres nas escolas nos obriga a superar essas visões tão limitadas – a do(a) pobre como imoral e não qualificado(a) para o trabalho. Para compreender esses sujeitos, é necessário dar maior centralidade às condições sociais e materiais de suas vivências e sobrevivências como seres humanos. Os percursos escolares trazem as marcas das trajetórias de vida, das condições sociais que lhes são dadas para produzir suas existências.

Condenar os(as) pobres a um sobreviver tão precarizado condiciona suas trajetórias como humanos, como sujeitos sociais e como estudantes. Sendo assim, o peso das condições sociais do viver e do sobreviver merece maior destaque nos cursos de formação inicial e continuada; merece maior atenção na avaliação dos(as) educandos(as) submetidos(as) a condições que estão nos limites da sobrevivência.

 

A pobreza, questão política

À medida que superarmos visões moralizantes e individuais da produção da pobreza, estaremos abertos(as) a reconhecer que a pobreza e as desigualdades sociais, raciais e de gênero estão associadas ao padrão de poder-dominação-subalternização vigente na sociedade. Certos coletivos sociais, raciais e de gênero se perpetuam concentrando o poder, a renda, a terra, a riqueza, o conhecimento, a justiça, a força, enquanto os coletivos pobres são mantidos como subalternos e marginais.

Os(as) pobres são os(as) sem-terra, sem-teto, sem-trabalho, sem-renda, sem-escola, sem-saúde, cujas vidas se encontram nos limites da sobrevivência. Desse modo, conforme avancemos em reconhecer a pobreza como uma questão social, passaremos a vê-la também como uma questão política, como um problema de Estado e, assim, a exigir as políticas de Estado capazes de alterar essa realidade.

 
Os coletivos empobrecidos têm consciência de que sua condição histórica de pobreza é produzida pelo padrão político de poder-dominação-subalternização e, em suas ações coletivas e nos movimentos sociais, reagem a ele, organizando-se em ações políticas e exigindo respostas contra a pobreza e as desigualdades. 

Comunidade quilombola Negros do Riacho, em Currais Novos-RN.

Eles contestam os tradicionais enfoques dos(as) pobres como carentes, atrasados(as), irracionais, preguiçosos(as), incompetentes e desqualificados(as) para o trabalho e, dessa forma, questionam essas visões tão arraigadas na cultura escolar e pedagógica e nos reeducam para pensar a pobreza e as desigualdades como uma produção política, das injustas relações de poder.

Esses coletivos exigem a politização do olhar das escolas, das políticas educacionais e da cultura docente para avançar no reconhecimento de que os milhões de crianças e adolescentes que chegam às escolas condicionados(as) pela pobreza extrema são vitimados(as) pelo padrão de poder que se perpetua em nossas sociedades. Clamam, ainda, pelo reconhecimento dos significados políticos de suas ações e movimentos em lutas por terra, teto, trabalho, escola.

Os movimentos que emergem dessas demandas não lutam por programas distributivos, mas confrontam de forma mais direta a concentração do poder, a apropriação da terra, do solo, da renda, da justiça, do Estado. Posicionam-se também contra o sistema escolar segregador. Dos(as) pobres e de seus movimentos vêm as pressões políticas mais radicais por justiça, igualdade e equidade.