2. Pobreza: um conceito complexo e multifacetado

Existem, infelizmente, muitos preconceitos em relação aos(às) pobres – a maioria deles baseados em um escasso ou nulo conhecimento de sua situação. Por isso, é importante ter uma visão mais complexa e ampla da pobreza no Brasil, para evitar de cair cegamente em lugares-comuns destituídos de fundamento. Um erro comum é o de identificar a pobreza com um baixo nível de renda ou de riqueza. Embora uma renda baixa ou nula represente, certamente, um elemento essencial para definir a pobreza, não é o único aspecto que deveria ser levado em consideração, pois existem facetas da pobreza que não se deixam compreender facilmente, se nos limitarmos a avaliar questões de renda. 

A própria definição da pobreza com base na renda representa, em certo sentido, um ato arbitrário. Vejamos, por exemplo, no caso do Brasil11, o estabelecimento por parte do governo da linha que separa pobreza – renda mensal per capita de até R$ 154 – e pobreza extrema –renda mensal de até R$ 77 por pessoa. É difícil dizer que quem recebe R$ 80 encontra-se em situação melhor que quem recebe só R$ 77, assim como é complicado afirmar que quem recebe R$ 160 não seria pobre. Da mesma maneira, a presença ou a ausência de políticas públicas específicas e de serviços públicos afetam profundamente a vida das camadas mais vulneráveis da população.

 

Em um Estado de bem-estar social, por exemplo, que oferece gratuitamente aos(às) cidadãos(as) quase todos os serviços básicos – educação, assistência à saúde, seguro-desemprego, auxílio-moradia etc. –, uma baixa renda não implica necessariamente em uma vida sem confortos. Por outro lado, em um Estado que não garante os serviços acima mencionados, até uma renda relativamente elevada pode não ser suficiente para proteger as pessoas de riscos normalmente ligados à pobreza – um exemplo disso pode ser visto no sistema de assistência de saúde nos EUA12: uma doença pode levar à falência até indivíduos da classe média, já que não há praticamente assistência pública gratuita. Até mesmo uma renda estável não constitui, portanto, uma garantia absoluta contra a pobreza ou contra os problemas ligados a ela: esses se resolvem, antes, com as políticas públicas voltadas à satisfação de necessidades básicas, seja diretamente – pela prestação de serviços básicos –, seja indiretamente – pela criação das condições por meio das quais os sujeitos conseguem satisfazer suas carências básicas13.

Existem, também, outros critérios que deveriam ser levados em conta além da renda, quando se busca chegar a uma visão mais sofisticada da pobreza no Brasil e de quem se encontra em situação de vulnerabilidade social e está prestes a cair nela. Tais parâmetros permitem, ainda, distinguir diferentes realidades e diferentes dificuldades enfrentadas pelos indivíduos em questão. Um deles é, naturalmente, a classe social e econômica: pode-se tratar de lavradores(as) que vivem de trabalho esporádico – de “bicos”, “beliscões” etc. –, de lavradores(as) ou camponeses(as) sem-terra, de operários(as) não qualificados(as), de prestadores(as) de serviços não qualificados(as), de camponeses(as) que possuem e cultivam terrenos pobres, secos e não irrigados – como no sertão brasileiro. 

Outro aspecto a ser levado em conta é o lugar de residência: o(a) pobre urbano(a) se depara com problemas diferentes daqueles do(a) pobre rural. Aquele(a), ao mesmo tempo em que está em alguns casos mais submetido(a) à violência do tráfico, por exemplo, frequentemente dispõe de hospitais e escolas públicas de qualidade muito superior aos encontrados no interior.

Retrato de uma pobreza urbana. Fotografia de Alex (2009). 

Além disso, diferentes regiões geográficas apresentam diferentes situações de carência: no caso brasileiro, as mais carentes são aquelas que, durante séculos, foram controladas politicamente por oligarquias locais poderosas e imersas na cultura da violência, do arbítrio e do privilégio – o coronelismo. 

Deve-se considerar ainda o fato de a moradia estar localizada em áreas isoladas e tradicionalmente abandonadas pelo Estado central. Nessa condição, os povos ribeirinhos da Amazônia, as populações do sertão e de outras regiões se tornam “povos sem Estado”, significando, com isso, a ausência de acesso a serviços básicos e a falta de infraestrutura adequada.

Casa de ribeirinhos(as). Fotografia de Celso Abreu (2007).

Uma das consequências mais brutais desse processo amplo de abandono por parte do Estado e de expropriação e exploração por parte das elites locais é a falta de capital social e cultural14: pobres são geralmente indivíduos sem educação formal e sem formação profissional, obrigados, por isso, a exercerem atividades pesadas, mal remuneradas e não qualificadas.

Outros critérios que deveriam ser levados em conta para entender a pobreza no Brasil são a etnia ou a cor da pele – índios(as) e negros(as) são, geralmente, mais vulneráveis nesse sentido por razões históricas15 –, o gênero – particularmente no caso de mães solteiras ou viúvas –, a idade – crianças e idosos(as) são mais vulneráveis –, a composição e a estrutura da família.

Há, finalmente, o aspecto temporal, ou seja, o fato de que, como observa o cientista político Paul Streeten, “a renda dos pobres tende a variar consideravelmente de ano em ano e de estação a estação, no contexto do ano, dependendo do tempo e de outros acidentes” (STREETEN, 1995, p. 30). Além disso, há outra condição de tempo a ser levada em conta: a falta ou a ausência absoluta de esperança de mudar sua situação no futuro podem tornar os indivíduos ou resignados ou violentos16.

Figura produzida pela Equipe de Criação e Desenvolvimento com base no texto dos autores. 

Essas considerações levam Streeten a elaborar um elenco de “benefícios não materiais ou não facilmente mensuráveis”, que frequentemente são “considerados pelos pobres mais valiosos do que qualquer melhoria material e mensurável”. Vejamos o que a lista inclui: 

[...] boas condições de trabalho; a liberdade de escolher seu trabalho e as maneiras de sustentar-se; autodeterminação, segurança e respeito de si; não ser perseguido, não ser humilhado, não ser oprimido; não ter medo da violência e não ser explorado; a afirmação de valores religiosos e culturais tradicionais; empoderamento [empowerment], reconhecimento; ter tempo adequado para o lazer e formas satisfatórias de utilizá-lo; um sentimento de que sua vida e seu trabalho têm um sentido; a oportunidade de participar ativamente em grupos voluntários e em atividades sociais em uma sociedade civil pluralista. [...] Nenhum legislador pode garantir que todas estas aspirações (ou até uma maioria delas) sejam satisfeitas, mas políticas públicas podem criar as oportunidades para sua realização. (STREETEN, 1995, p. 50)

A propósito do que foi afirmado acima, o economista egípcio e professor da Universidade de Paris, Pierre Salama17, lembra que “a pobreza é ao mesmo tempo um fato e um sentimento. A síntese destes dois aspectos é tão difícil como casar água e fogo” (DESTREMAU; SALAMA, 1999, p. 18).