3. Desigualdade, educação e cidadania

A questão da desigualdade, nos últimos anos, tem se tornado objeto de muitos estudos e, em alguns casos, de livros que viraram verdadeiros best-sellers18. Um deles é The Spirit Level, de Richard Wilkinson e Kate Pickett, que são epidemiologistas, embora o primeiro tenha se ocupado também de história econômica e a segunda, de antropologia física. A autora e o autor demonstram, com base em uma quantidade impressionante de estudos empíricos, que a desigualdade de renda e riqueza em uma sociedade piora, efetivamente, a qualidade de vida, inclusive a das pessoas que se situam no extremo superior da escala social.

No entendimento de Wilkinson e Pickett, a desigualdade de renda e riqueza provoca ou torna mais grave uma série de fenômenos negativos, como o baixo nível de confiança recíproca entre seus membros; aumento de patologias psiquiátricas e de adição (dependência de drogas etc.); diminuição das expectativas de vida e aumento da mortalidade infantil19; péssimos resultados escolares entre as crianças; aumento dos casos de gravidez entre menores; aumento dos homicídios; aumento da população carcerária; e forte diminuição da mobilidade social.

Figura produzida pela Equipe de Criação e Desenvolvimento, a partir de fotografia de Clément Jacquard (2013) e texto dos autores.

Wilkinson e Pickett (2010, p. 29) pontuam, com base nos dados, que a redução da “[...]  desigualdade é a melhor maneira de melhorar a qualidade do ambiente social e, como consequência, a real qualidade de vida20 para todos nós”. Notemos, porém, que o aspecto mais afetado pela desigualdade e que, ao mesmo tempo, contribui para perpetuá-la é a educação. A autora e o autor citam, ainda, muitos estudos que mostram como os resultados escolares são profundamente influenciados pela posição social dos pais21 (WILKINSON; PICKETT, 2010, p. 105). Nessa perspectiva, crianças provenientes de famílias pobres não vivem em um ambiente favorável à sua atividade de estudo.

Essas crianças, quando não são obrigadas a deixar a escola para trabalhar e contribuir à renda familiar, têm de lidar com situações domésticas que representam um obstáculo ao estudo: falta de um espaço adequado para se sentar e se concentrar; ausência de livros ou de acesso à internet para fazer pesquisas; obrigação de cuidar dos(as) irmãos(ãs) menores, etc. Além disso, elas testemunham, frequentemente, episódios de violência doméstica e não recebem um apoio adequado de seus pais, os quais, quase sempre, possuem escolaridade baixa ou nula e não são capazes, ou mesmo não estão dispostos, a apoiá-las em seus deveres.

Um estudo empírico citado por Wilkinson e Pickett estabelece, até mesmo, relações com o ambiente das crianças e sua atividade neurológica, afirmando que “[...] aprendemos melhor em ambientes estimulantes, quando somos confiantes de ter sucesso”, uma vez que, “[...] quando nos sentimos felizes ou confiantes, nossos cérebros se beneficiam da liberação de dopamina, uma substância gratificante, que ajuda também a memória, a atenção e a solução de problemas”. Ademais, a liberação de serotonina "[...] melhora o ânimo, e de adrenalina, que nos ajuda a alcançar performances ótimas”; por outro lado, “[...] quando nos sentimos ameaçados, desamparados e estressados, nossos corpos são afetados pela liberação do hormônio cortisol, que inibe nossa capacidade de pensar e nossa memória” (ZULL, 2002 apud WILKINSON; PICKETT, 2010, p. 115).

Portanto, convém ressaltar que a permanência das crianças na escola não é suficiente para que sua formação as ajude a sair do círculo vicioso da pobreza. A frequência escolar é uma condição necessária, mas não suficiente para garantir uma boa educação: sem escola de qualidade, sem boas condições22 de estudo em casa, sem apoio de pais e professores, as crianças de famílias pobres muito dificilmente conseguem obter bons resultados e alcançar um nível de instrução suficiente para ter mais chances profissionais na vida.

Nada disso diz trata-se, efetivamente, de mérito individual. Crianças inteligentes e aplicadas podem, com efeito, encontrar obstáculos insuperáveis na péssima qualidade do ensino recebido ou em um ambiente doméstico desfavorável. Notemos que resultados fracos não são, desse modo, necessariamente o reflexo de uma falta de inteligência ou de aplicação por parte dos(as) estudantes, mas da ausência de circunstâncias favoráveis à aprendizagem23. Um obstáculo é representado, também, pela incapacidade – e, frequentemente, pela impossibilidade – de as instituições escolares lidarem com as dificuldades familiares dos(as) educandos(as). A pior e mais injusta atitude é, seguramente, culpar as crianças pelos resultados insatisfatórios que obtêm em seu processo de aprendizagem.

Nesse sentido, há pesquisadores(as) que criticam as instituições, inclusive a instituição escolar (FREITAS, 2009, p. 294.), para salientar o aspecto objetivo da ausência de políticas públicas eficazes – de planejamento, de alocações de recursos, etc.–, por um lado; e das atitudes de desinteresse por parte de representantes das instituições – professores(as), diretores(as) de escola, etc.–, por outro.

O sociólogo e cientista político Jessé Souza salienta que, em sociedades com alto nível de desigualdade, o processo de transmissão de saber e de conhecimento superiores permanece restrito às elites. Enquanto as crianças de famílias pobres recebem, na escola, uma educação limitada ao tipo de conhecimento básico exigido para sua futura vida profissional – são alfabetizadas, aprendem habilidades técnicas rudimentares suficientes para desempenhar trabalhos não especializados ou com baixo nível de especialização –, as crianças de classe média e alta recebem na própria família (não na escola) o tipo de educação que as distinguirá de seus(suas) colegas mais pobres: é na família que são estimuladas a ler os livros pertencentes ao “cânone” – isto é, à lista de textos que se espera que sejam conhecidos pelas pessoas “bem-educadas” –, que se confrontam com obras de arte, que aprendem a apreciar arte e cultura, e a saber como comportar-se nas diferentes circunstâncias, mostrando que pertencem ao tipo “certo” de pessoas (SOUZA, 2009, 18 et seq. e 44 et seq.).

Até pouco tempo atrás, a saber: até a introdução de cotas para estudantes egressos(as) de escolas públicas no acesso às universidades, assistia-se ao paradoxo pelo qual os(as) jovens de classe média e alta tinham acesso via vestibular a um ensino universitário completamente gratuito – para o qual eram preparados por escolas privadas de bom padrão ou por cursinhos pagos –, enquanto os(as) jovens de famílias mais pobres tinham de entrar em universidades particulares, pagando para receber uma instrução superior que, com frequência, é qualitativamente inferior àquela das universidades públicas24. Assim, a desigualdade social se mantinha pela desigualdade de instrução e educação. Dado o exposto, importa registrar que ainda é cedo para determinarmos em que medida a facilitação do acesso às universidades públicas para jovens mais pobres possibilitará uma mudança nesse sentido.

A pobreza extrema agudiza e torna ainda mais duro o caminho da autonomia em geral e, em especial, a feminina. Como se sabe, por intermédio de ampla literatura, a estrada da cidadania para as mulheres sempre foi feita de muitas outras veredas, exatamente porque são várias as modalidades de dominação e exclusão que sofrem na vida pública e privada. Suas vozes foram, há muito tempo, emudecidas, pois os vários padrões de dominação a que estão submetidas se entrecruzam em muitos momentos e circunstâncias da vida, tanto do ponto de vista político como cultural, formando, por vezes, um labirinto sem porta de saída.

Nesse sentido, as formas de marginalização que experimentam se superpõem e reforçam sua mudez. Giovanna Zincone (1992, p. 189) se refere à exclusão no plano pré-político, levando em consideração a dominação econômica e cultural sofrida pela mulher ainda na família, que pode ser tão opressiva como outras instituições da sociedade em geral. Semelhante situação constituiu, historicamente, um paradoxo enorme para a convivência democrática, pois mulheres dominadas e excluídas do aprendizado de várias modalidades de exercício do direito à voz pública são, ao mesmo tempo, as primeiras pedagogas dos(as) futuros(as) adultos(as) e cidadãos(ãs).

O fato de experimentarem, desde muito cedo, essa humilhação e esse esmagamento de suas potencialidades como ser humano faz com que elas tendam a reproduzir esse padrão formativo com seus filhos e filhas, transmitindo-lhes a amarga desilusão de quem está acostumada a ser humilhada e a quieta resignação de quem sempre foi submetida à violência física e psicológica.

As crianças só poderiam escapar a esse tipo de formação familiar através da ação da escola. Sabe-se, no entanto, que a maioria de nossas escolas não se preocupa e sequer considera relevante educar jovens para fazer deles(as) cidadãos(ãs) ativos(as) politicamente. O que se verifica, de fato, é o abandono de um componente fundamental da vida democrática: a educação no sentido mais profundo do termo – que compreende a educação dos sentimentos, da sensibilidade, do gosto, e da sociabilidade em geral; enfim, a educação como formadora de identidade e de subjetividade –, em prol de uma mera formação profissional e tecnicista cuja principal preocupação é a de gerar lucro, não de formar cidadãs e cidadãos.

O resultado desse tipo de abandono público, isto é, da renúncia por parte do Estado a formar cidadãos(ãs), é a desinformação generalizada, a indiferença política, cívica e, sobretudo, a transformação das pessoas em alvos fáceis para qualquer tipo de manipulação religiosa, ideológica, em especial a da demagogia política mais perigosa, deformadora de qualquer sentido republicano da vida coletiva. Para observar isso, basta ver os programas de televisão e rádio ofertados à sociedade brasileira em geral e aos(às) pobres em especial: a tônica fundamental desses programas caminha no sentido da extrema vulgarização e infantilização do público; faz imperar a sensação de que qualquer comportamento é válido para se alcançar algum tipo de sucesso, enquanto este último passa a ser o critério absoluto para guiar a vida.

Notemos que as consequências dos processos de privatização da educação e de desinteresse do Estado para com a formação humana e cultural dos(as) cidadãos(ãs) são visíveis em toda a vida social. Resultam, pois, em um geral enfraquecimento dos vínculos de coesão e solidariedade civis e na perigosa redução de qualquer sentimento de pertencimento a uma coletividade. Com isso, enfraquece-se ainda mais aquele aspecto do conceito de cidadania ligado a ações políticas que fiscalizam e instituem controles democráticos25 sobre os modos de intervenção dos poderes públicos.

É de conhecimento bastante difundido nas teorias democráticas que as modalidades de técnicas decisórias sobre o que diz respeito a todos bem como as referentes à gestão cotidiana da democracia possuem a maior relevância para aumentar e tornar mais democráticos os procedimentos administrativos e políticos da vida em sociedade. É preciso, contudo, salientar que tudo isso faz parte da constituição de uma forte cultura cívica, portanto, do aprendizado de capacidades e habilidades para se formar como cidadão(ã) exigente de uma república democrática (ZINCONE, 1992, p. 22).