Conclusão: sobre a distribuição de peixes

Um dos argumentos mais utilizados contra políticas sociais que prevejam uma redistribuição direta de renda (como, por exemplo, o Programa Bolsa Família) é que não combateriam as causas da pobreza, mas somente seus sintomas. Muitas pessoas que opinam sobre a questão recorrem ao provérbio chinês segundo o qual, quando se encontra um homem faminto, é melhor ensinar-lhe a pescar a dar-lhe um peixe. Nesta última seção do módulo, discutiremos se esse provérbio se aplica aos(às) pobres.

O filósofo escocês Adam Smith afirmava que a causa principal do aumento da riqueza é a “parcimônia”, a qual, por sua vez, deriva do “desejo de melhorar nossa condição, um desejo que [...] herdamos do seio materno e nunca nos abandonará até a sepultura” (1996, p. 342). Essa ideia segue caracterizando o pensamento liberal ao longo do século XIX, com a convicção de que a chave para acumular riqueza é a abstinência e de que “os pobres eram pobres porque não tinham o caráter necessário para praticar esta abstinência” (CHANG, 2013, p. 197). Esse preconceito permanece muito vivo na opinião pública de muitos países, em particular no Brasil. Seria tentador ver nele simplesmente uma maneira de racionalizar a existência da pobreza por parte de quem não é pobre.

Ao culpar os(as) pobres pela condição enfrentada por eles(as), obter-se-ia uma dupla vantagem: por um lado, poder recusar qualquer responsabilidade por tal situação – e, portanto, qualquer dever de ajudá-los(as) a sair dela; por outro, autoatribuir-se o mérito exclusivo por seu próprio bem-estar. Contudo, seria um erro pensar que tal atitude deriva de uma tentativa intencional e consciente de autoabsolvição ou de uma mera falta de solidariedade – embora o resultado final seja precisamente esse. Trata-se antes de uma visão de mundo que se tornou dominante e acabou sendo interiorizada de tal forma que suas contradições internas passam despercebidas.

A principal dessas contradições consiste no fato de que, ao mesmo tempo em que o indivíduo é responsabilizado por sua situação, a causa da pobreza é identificada com uma falta de caráter comum aos(às) pobres como grupo. Se um(a) rico(a) empresário(a) gastar dinheiro em drogas, álcool, excessos etc., para a opinião pública, a responsabilidade é dele(a) como indivíduo, e ninguém diria que isso é o típico comportamento esperado34 de um(a) empresário(a). De acordo com o senso comum, se um(a) pobre gastar seu parco dinheiro em cachaça ou prostitutas, a reação mais comum é atribuir isso ao fato de ele(a) ser pobre, ou seja, de pertencer a um grupo cujos membros perdem sua individualidade para assumir, inevitável e necessariamente, atitudes e comportamentos padronizados e naturalizados.

Emerge, neste ponto, uma segunda contradição interna dessa visão: se o(a) pobre é necessariamente incapaz de se controlar, não há como responsabilizá-lo(a) por isso, afinal ele(a) estaria obedecendo à sua “natureza de pobre”, isto é, estaria simplesmente revelando ter os traços característicos do seu grupo.

Tudo isso acontece, repetimos, sem que uma atitude análoga seja tomada em relação a empresários(as) fraudulentos(as)  ou, em geral, a membros das classes média e alta que se demonstrem desonestos ou criminosos. Ninguém atribuiria a responsabilidade por tais atos ao fato de esses sujeitos pertencerem a uma classe social elevada. Enquanto a lista das características negativas atribuídas aos(às) pobres é extensa – ignorantes, preguiçosos(as), violentos(as), parasitas, estúpidos(as), associais, “farofeiros(as)” etc. –, não existe uma lista análoga relativa à classe média ou aos(às) ricos(as) – no máximo, existe algo parecido em relação aos(às) super-ricos(as): excêntricos(as), bizarros(as), caprichosos(as), etc., todas essas características que acabam sendo usadas mais para justificar excessos e falta de parcimônia do que para condená-los(as).

Ora, o ponto é que a visão de mundo acima mencionada, que se expressa na ideia smithiana e clássico-liberal de que o bem-estar econômico depende da parcimônia ou, de modo mais geral, de traços do caráter individual, é infundada. Não que seja completamente falsa, mas é impossível atribuir unicamente a determinadas características individuais35 a produção de riqueza (ou de pobreza). O economista sul-coreano e professor em Cambridge Ha-Joon Chang, no livro 23 coisas que não nos contaram sobre o capitalismo, menciona vários fenômenos que desmentem essa ideia. Um deles é o fato de que os(as) pobres muitas vezes são muito mais dotados(as) de espírito empreendedor36 do que os membros da classe média ou alta e, apesar disso, não conseguem sair da pobreza por causas estruturais, ou seja, pela falta de oportunidades concretas de trabalho em seu lugar de residência, pela falta de infraestrutura etc.

Catador de material reciclável em Fortaleza, Ceará. Fotografia de Carlos Reis (2009).




No início do século XXI, discutiu-se muito a teoria do economista peruano Hernando de Soto (2001), segundo o qual o maior problema na luta pela erradicação da pobreza consistiria no fato de que os(as) pobres não são os(as) proprietários(as) de suas casas e, portanto, não possuem bens imóveis para obter empréstimos ou hipotecas bancárias que lhes permitam dispor do capital necessário para iniciar uma atividade econômica autônoma. As propostas de Soto foram discutidas e aplicadas em vários países, do Peru ao Camboja, mas os resultados não foram os esperados, já que somente uma parcela mínima das famílias que se tornaram proprietárias de suas casas – graças a leis especialmente promulgadas para tal fim  – conseguiram de fato empréstimos. 

O que parece razoável, em teoria, demonstra-se frequentemente inviável na prática, devido a fatores concretos próprios da sociedade particular na qual a solução “milagrosa” deveria ser aplicada, já que muitas vezes a teoria não leva em conta o contexto histórico e social específico. As variáveis podem abranger a cultura econômica e política da população, os preconceitos por parte das instituições financeiras e, de outro lado, o desconhecimento das questões financeiras pelos(as) pobres ou, simples e compreensivelmente, o medo deles(as) de perder a única riqueza que têm, o que os(as) inibe de hipotecarem suas casas.

Nessa perspectiva, também podemos refletir sobre o microcrédito, que foi considerado durante muito tempo o remédio capaz de resolver completamente o problema da pobreza. Como vimos em outra seção, os(as) pobres encontram enormes dificuldades para acessar o crédito bancário, já que não dispõem de garantias suficientes. Por isso, o microcrédito37 foi considerado por vários anos como o melhor instrumento para permitir-lhes obter capital necessário para iniciar suas empresas.

Contudo, o microcrédito tem demonstrado funcionar somente quando houve o apoio financeiro dos governos; sem tal apoio, também as instituições de microfinanças “precisam cobrar, e vêm cobrando, taxas quase iguais às dos agiotas. [...] Se não forem subsidiadas, as instituições de microfinanças precisam cobrar taxas de juros de, tipicamente, 40 a 50% ao ano pelos seus empréstimos” (CHANG, 2013, p. 225). Por isso, o sistema de microcrédito no Brasil funciona basicamente graças aos fundos disponibilizados pelo Governo Federal. É importante notar que, também nesse caso, a ausência de infraestrutura e de condições adequadas acaba dificultando consideravelmente o desenvolvimento de atividades econômicas autônomas.

Bancos comunitários

Para além das ações dos bancos públicos para oferecer microcrédito, algumas soluções criativas e inovadoras podem ser usadas para combater o problema da falta de crédito para as populações de baixa renda, com implicações abrangentes na dinâmica econômica das comunidades. A criação do Banco Palmas e sua moeda, a Palma, num dos bairros mais pobres da cidade de Fortaleza, capital do Ceará, em 1998, foi a solução encontrada por aquela comunidade para criar emprego e renda de maneira cooperativa e comunitária no próprio bairro. Atualmente, a iniciativa já se desenvolveu para outros municípios do Ceará e outros estados do país, e há mais de 100 bancos e moedas comunitárias, cada uma representando o fortalecimento da produção e do comércio local e garantindo geração de emprego, renda e desenvolvimento para as próprias comunidades.

No vídeo, você poderá entender um pouco mais sobre a fundação e o funcionamento do Banco Palmas.

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Documentário Banco Palmas – Projeto Brasil27. Para obter mais informações, acesse: http://www.institutobancopalmas.org/
 

 

 

Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a dificuldade maior na tentativa de ensinar os(as) pobres a pescar é a falta de peixes. Tendo em conta que o problema da pobreza no Brasil é particularmente forte nas áreas rurais38, é impensável imaginar que os(as) pobres consigam sair de sua situação somente por suas próprias forças (ou seja, graças ao seu “espírito empreendedor” ou ao microcrédito), já que frequentemente as regiões nas quais vivem são economicamente desfavorecidas, não há nelas infraestrutura suficiente para permitir a criação de empresas de médio e grande portes, e seus(suas) moradores(as) não dispõem da educação e da formação profissional necessárias para trabalhar em empresas com um nível tecnológico médio ou elevado. 

Mesmo oferecendo microcrédito e treinamento profissional às pessoas que moram nessas áreas, não seria imaginável que elas conseguissem encontrar trabalho regular e duradouro caso não existissem maciços investimentos públicos para criar trabalho e para estimular as empresas privadas a investirem nessas regiões – inclusive na formação dos(as) trabalhadores(as)39. Em todo caso, não é suficiente ensinar a pescar quem vive no deserto, ainda que se trate de um deserto infraestrutural e educacional (embora, no caso do sertão árido e semiárido, a definição literal de deserto não fique tão longe da realidade). O combate à pobreza deve passar necessariamente por políticas públicas de distribuição direta de renda monetária, embora elas não possam e não devam ser as únicas formas de luta contra a miséria.

Tal luta é, ao mesmo tempo, um processo criador de cidadania. O que está em jogo não é simplesmente o alívio da situação de pobreza de importantes faixas da população – no momento, mais de 50 milhões de brasileiros(as) recebem o PBF –, mas a inclusão delas no corpo dos(as) cidadãos(ãs). Não se trata de uma mera inclusão econômica e social – embora inclua essas duas dimensões –, mas de fazer com que as pessoas se vejam como participantes do corpo político, como detentoras de direitos – à assistência pública, por exemplo – e deveres – de enviar seus(suas) filhos(as) para a escola, para ilustrar. Políticas públicas de combate à pobreza são, em suma, o sinal de que o Estado e a comunidade política não se esqueceram dos(as) pobres, que se preocupam com o sofrimento e com a situação de carência e vulnerabilidade que enfrentam. São, em outras palavras, sinais de uma solidariedade cívica e política, além de moral, sem a qual nenhuma comunidade política e nenhum país pode existir em paz e prosperar de forma justa.

 

Entrevista com a autora e o autor - Encerramento do módulo

 

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