2. Desigualdade social, cultura escolar e movimentos sociais

Os movimentos sociais entram em cena como sujeitos de direitos

A luta dos movimentos sociais pelo reconhecimento de seus direitos, entre eles o direito à terra, à saúde, à moradia, à educação, revela uma crítica ao universalismo abstrato e formal presente no discurso dominante sobre cidadania e propõe mudanças nos espaços públicos, como o espaço escolar. Mesmo vivendo em um mundo onde a defesa dos direitos humanos é uma espécie de “consenso universal”, os movimentos sociais sempre sentiram a pouca concretude desse discurso, já que a discriminação baseada em critérios étnicos, econômicos, linguísticos e de região a que são submetidos fala mais forte que o discurso universalista dos direitos iguais para todos.

Lutar para serem reconhecidos como cidadãos, portadores de direitos iguais, significou, para esses coletivos, lutar também pelo reconhecimento e valorização de sua identidade, o que revelou a dimensão conflitiva da vida política (MOUFFE, 1999). Uma vez que os movimentos sociais criam um conflito dentro deste espaço, forçam a mudança em busca de acolhimento. Nessa perspectiva, talvez uma das maiores contribuições dos movimentos sociais latino-americanos à política social democrática e igualitária seja o desafio de se construir – tal qual afirmam movimentos sociais como o indígena, o quilombola, o MST etc. – um mundo que seja único e diverso, um mundo onde caibam muitos mundos. Como afirmam Paoli e Telles,

Ao se fazerem reconhecer como sujeitos capazes de interlocução pública, a presença desses atores coletivos na cena política teve o efeito de desestabilizar ou mesmo subverter hierarquias simbólicas que os fixavam em lugares subalternizados por entre uma trama densa de discriminações e exclusões, ao impor critérios igualitários de reconhecimento e princípios democráticos de legitimidade. (PAOLI; TELLES, 2000, p. 106)

 

Assim, a luta dos chamados novos movimentos sociais foi pela transformação da sociedade, e não apenas pela tomada do poder através do Estado. Para isso, eles foram além das lutas de caráter econômico e político, e buscam a democratização da sociedade em seus aspectos mais singulares, pois sabem bem que "ser pobre significa não apenas privação econômica e material, mas também ser submetido a regras culturais que implicam uma completa falta de reconhecimento das pessoas pobres como sujeito, como portadores de direitos." (DAGNINO, 2000, p. 82).

A exclusão, para esses coletivos, aparece também na forma de racismo e discriminação cultural, e não só como exploração econômica. Desse modo, os movimentos sociais começam a questionar as políticas sociais de caráter universalista, que pretendem superar as desigualdades sociais pela perspectiva da garantia formal de oportunidades iguais para todos os cidadãos, tais como as políticas educacionais.

Nesse processo, uma das críticas mais fortes à cultura escolar hegemônica é que, nessa concepção de “escola pública igual para todos, direito de todos os cidadãos”, longe de existir um conceito de cidadania universal, o que há é uma imposição cultural de um determinado grupo social – cujo perfil é de homem, branco e proprietário – sobre outros. Ao entrarem na escola, depois de um processo intenso de luta por esse direito, crianças e jovens dos coletivos feitos desiguais encontram um ambiente totalmente distinto do seu e não se identificam com as lógicas, as normas, as estruturas que orientam a vida escolar. Também não são reconhecidos(as) como sujeitos que têm uma cultura a ser socializada. Seus valores, suas formas de pensamento e expressão não são considerados processos de conhecimento legítimo, que devem ser acolhidos e transmitidos pela escola. Pelo contrário, são vistos como problema, “déficit” a ser superado para que eles, por fim, possam ascender à “cultura legítima”4 até conquistarem seu status de cidadão.

Buscando superar esse modelo, os movimentos sociais procuram ocupar a escola, deixando nela sua marca.

Nesse quadro de exclusividade pedagógica tão institucionalizada resulta politicamente desestruturante que esses seres pensados inferiores, portadores de saberes inferiores se afirmem sujeitos de Outras Pedagogias e de outros saberes e façam desse território tão cercado um campo de disputa política. “Ocupemos o latifúndio do saber”. É pedagógico que resistam aos currículos, às instituições da ciência moderna tão cercadas com a mesma lógica política com que lutam contra as cercas da propriedade privada do agronegócio, que aproximem a luta da reforma agrária com as lutas pela reforma educacional. Que articulem as lutas pelo direito a terra, e a vida com direito ao conhecimento, à escola, à universidade. (ARROYO, 2012, p. 33)

Nessa luta, eles vão mostrando que a escola pode ser espaço de transformação social, comprometido a construir um mundo menos desigual, mais justo e democrático e, por isso mesmo, mais diverso.

Muitas dessas lutas acabaram por impulsionar políticas públicas mais democráticas e a construção de uma escola pública mais colada à realidade e comprometida com a transformação social. Mas, que mudanças precisam acontecer no interior das escolas para que elas deixem de ser espaços de reprodução de desigualdades e se transformem em espaços de emancipação para esses coletivos? Buscando superar esse modelo, os movimentos sociais lutam por uma escola que dê centralidade aos sujeitos; reconheça, acolha e valorize a diversidade; dialogue com a cidade e se comprometa com a transformação social.