2. Desigualdade social, cultura escolar e movimentos sociais

Uma escola que dê centralidade aos sujeitos

Como vimos anteriormente, a cultura da homogeneização se arraigou na prática pedagógica da maioria das escolas, transformando muitos e diversos sujeitos em estudantes de uma determinada série. A categoria aluno, como bem coloca Gimeno Sacristán (2005), é uma construção social que padroniza corpos, mentes, desejos e aprendizagens, buscando modelá-los a partir de um padrão prévio: o do branco, varão, urbano, “civilizado”.

A forma escolar encontrada para conseguir esse controle veio através da seriação, cujo eixo estruturante é o conteúdo em detrimento dos sujeitos, e a única referência é a matéria a ser ministrada, não os(as) envolvidos(as) – educandos(as) e educadores(as). Desse modo, independentemente de quem são os(as) estudantes, que experiências trazem ou em que contexto vivem, já se tem definido, a priori, quais conteúdos devem ser ensinados em determinada série. 

De certa maneira, isso dá muita segurança aos(às) professores(as), pois é possível ter um controle muito maior sobre o trabalho, além de despender menos esforço: com o planejamento da série feito, é necessário apenas repeti-lo, ano a ano. Por outro lado, a bagagem cultural dessas crianças e desses(as) jovens que chegam à escola são desconsideradas, desprezadas e deslegitimadas, já que há uma imposição de que se encaixem em um modelo que muito se distancia de suas experiências sociais.

Nessa lógica, o fato de alguns(as) alunos(as) da 1ª série terem, por exemplo, 12 ou 16 anos não faz a menor diferença. Como não sabem ler, estão em processo de alfabetização e são “tratados(as)” da mesma forma que um(a) aluno(a) de sete anos, com o mesmo método e, muitas vezes, até o mesmo material didático. Para esse modelo de organização escolar, as experiências ao longo da vida não interferem no processo de aprendizagem dos(as) estudantes. 

Os conteúdos, organizados de forma compartimentada nas disciplinas, passam a ser os únicos aspectos considerados nessa organização. E, para avançar em determinados conteúdos, é preciso vencer os chamados “pré-requisitos”. O resultado disso é a reprovação e a exclusão escolar de muitas crianças e muitos(as) jovens que não se reconhecem nessa escola, nesse currículo, nesses materiais. Jovens originários(as) dos coletivos pobres, excluídos(as) dos espaços públicos e do direito de ver sua cultura retratada nos livros escolares, nos materiais didáticos. Assim, a escola, através de mecanismos como a seriação, consegue reproduzir a desigualdade presente na sociedade.

Uma relevante luta travada pelos movimentos sociais foi romper com esse modelo, colocando os sujeitos no centro do processo escolar. Mas, o que significa dar centralidade aos sujeitos dentro da organização escolar? Que mudanças precisam ocorrer na escola?


Em primeiro lugar, ressalta-se que considerar os sujeitos no centro do processo educativo implica muito mais que colocar a formação de sujeitos críticos e participativos como um dos objetivos do Projeto Político Pedagógico da escola. Considerá-los no centro do processo educativo acarreta reorganizar tempos, espaços5, agrupamentos, conteúdos escolares. Importa também em mudar o lugar de educandos(as) e educadores(as) na dinâmica do trabalho e, principalmente, em transformar a vida da escola, entendendo-a como espaço de cultura.

Quando sinto que já sei

Algumas possibilidades de reorganização desses tempos, espaços e dinâmicas escolares são exploradas no documentário Quando sinto que já sei (2014). O vídeo reúne depoimentos de pais, mães, estudantes, educadores(as) e professores(as) de oito cidades brasileiras em suas reflexões sobre a escola convencional e novas maneiras de tratar a educação a partir de uma perspectiva que considere uma formação humana mais ampla.

Assista ao vídeo para conhecer as experiências relatadas e acesse a página oficial do filme.

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A centralidade dada aos sujeitos em muitas propostas e muitos programas escolares – conquista dos movimentos sociais – resultou, principalmente a partir da década de 1990, em uma série de experiências que romperam com a lógica seriada, transgredindo e modificando as políticas públicas educacionais no país.

Foi nesse contexto que programas como a Escola Plural e a Escola Cidadã6 entraram em cena, ao transformarem em política pública muitas das experiências transgressoras vividas por coletivos de educadores(as) comprometidos(as) com a mudança social. A institucionalização dessas práticas inovadoras acarretou muitos avanços e também muitos desafios para todos(as) que dela participaram.

Dentre estes, talvez um dos maiores desafios tenha sido a implantação dos ciclos de formação humana, pois, com eles, houve a inversão de centralidade da escola: os(as) estudantes, e não mais os conteúdos, passaram a ser o centro da organização escolar. Isso exige uma nova forma de pensar o processo de aprendizagem, vinculando-o ao processo de formação do sujeito. Para ilustrar, significa entender que uma criança de sete anos não aprende a ler da mesma forma que um adolescente de 15 que ainda não lê. E este, por sua vez, aprende de forma distinta de uma senhora de 60 anos que tampouco lê, ainda que todos tenham o direito de serem alfabetizados. Por fim, essa mudança implica compreender que o aprendizado envolve muito mais que o aspecto cognitivo e não pode estar desvinculado das experiências cultural e social dos sujeitos.

A ideia de ciclo, nessa perspectiva, está fundamentada numa concepção mais ampla de educação, que relaciona a aprendizagem com a formação humana, considerando os grandes ciclos de vida: infância, adolescência, juventude, vida adulta.

Conceber a escola na perspectiva dos ciclos de formação forçou que se repensasse a estrutura fragmentada do tempo escolar, até então regulada pelo calendário que divide o tempo em ano, semestre, bimestre. Dessa forma, mudou-se a orientação com base nos ciclos de formação humana, muito mais amplos e diversificados.

Entretanto, considerar esses ciclos requer mais que dividir o tempo escolar em tempos mais longos que o ano letivo, compreende também pensar nas formas próprias de aprender dentro de cada um deles.  Ou seja, o fato de um(a) jovem de 15 anos não saber ler, por exemplo, não faz com que ele(a) deixe de ter desejos, projetos, interesses, formas de ver o mundo e viver nele, ou que deixe de ser jovem como qualquer outro(a) já alfabetizado(a). Dessa maneira, embora também não saiba ler, o processo de formação desse(a) jovem se distancia bastante do processo de formação e alfabetização de uma criança de sete anos.

Os ciclos, de seu lado, não estão desvinculados do contexto social e cultural em que cada indivíduo está inserido. Ao se discutir o que é próprio da infância, por exemplo, é preciso pensá-la não de forma abstrata, mas levando em consideração o universo cultural onde essa infância está sendo vivida, pois ser criança indígena é bastante diferente de ser uma criança negra da periferia de uma grande cidade ou um sem-terrinha. Por isso, a dimensão da diversidade é um componente fundante dos ciclos de formação e uma exigência para qualquer escola que se pretenda inclusiva e democrática.

Nesse sentido, é importante que nos perguntemos: Que concepções de tempos de formação temos em nossas escolas? Os tempos da escola são vistos como tempos de formação humana ou apenas tempos de transmissão de conteúdos? Como entendemos os conteúdos acadêmicos dentro da escola: como instrumentos de formação ou como fins em si mesmos? Estamos criando canais de conexão entre a cultura dos estudantes e a cultura acadêmica? Através de que práticas? Consideramos que, por trás de um(a) aluno(a), existe uma criança ou um(a) jovem que carrega um conhecimento, uma cultura, uma forma própria e diversa de ver e viver o mundo?


Uma escola que se pretenda democrática precisa, então, compreender e acolher a diversidade, transformando-a em vantagem pedagógica.