2. Aprofundando a relação entre pobreza e currículo

A pobreza, produto da irracionalidade dos pobres?

Pela análise da forma como os pobres são pensados nos currículos, nas teorias pedagógicas, no material didático e na cultura escolar e docente, poderemos avançar para inventar outros tratos possíveis da relação entre currículo, conhecimento, ciência e pobreza. Uma das questões que devemos nos colocar enquanto profissionais da educação é sobre uma análise com maior da forma com que o conhecimento e a cultura são pensados nos currículos. Não será difícil descobrir que os saberes ali contemplados são entendidos como a única forma de pensar válida, a única cultura nobre, a única racionalidade; se aprendidas, inexoravelmente levarão a humanidade ao progresso. Os currículos, da Educação Básica à Superior, incorporaram essa concepção de conhecimento e de cultura científicos de que pensam ser a síntese. Tal visão produz a ideia de que os sujeitos em situação de pobreza estariam condicionados a ela por não se apropriarem desses saberes científicos supostamente emancipadores. Infelizmente, na sociedade e nas políticas educativas, essa é a cultura escolar, docente e curricular que parece predominar.

Seria essa cultura política e pedagógica a responsável por sustentar a condicionalidade da frequência à escola ao recebimento de uma bolsa do Programa Bolsa Família? Essa contingência não foi inventada pelo PBF, mas é inerente às formas hegemônicas de pensar a relação entre pobreza e ignorância, e desta como causa daquela. Tal exigência é resultado de um modo dominante de pensar a ciência, o conhecimento e a cultura como saídas inexoráveis para o progresso; mais ainda, é constitutiva do pensamento e da cultura sociais e políticos, não apenas escolares e pedagógicas.

Não é nada fácil para o pensamento moderno e os currículos superarem, ou ao menos repensarem, sua própria lógica hegemônica. Não é fácil também articular currículo e pobreza, pois seria necessário romper as concepções lineares de conhecimento e dos coletivos empobrecidos, vistos como atolados no atraso cultural, intelectual e moral.

“Agora olhavam as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo. Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos. Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam. Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão. Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao espírito, soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada. Como podiam os homens guardar tantas palavras? Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes, misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para não desencadear as forças estranhas que elas porventura encerrassem.”

Trecho de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2009, p. 81-82).

Dois meninos, desenho de Cândido Portinari (1957).

 

A desmistificação, por parte dos coletivos docentes e discentes, desses entendimentos ainda dominantes – de relacionar conhecimento, cultura e racionalidade com progresso e com “superação” da pobreza – pode ser o caminho, o início da possibilidade de avançar para outra relação entre currículo, conhecimento, cultura científica, percurso escolar e pobreza. Sem essa análise crítica prévia, que objetiva desconstruir tais ideias de conhecimento, cultura e racionalidade, e a correlação delas com a produção ou a superação da pobreza, será difícil avançar para equacionar a relação entre currículo e pobreza.

Tentativas de solucionar essa equação currículo-pobreza existem. Porém, as concepções perniciosas estão intimamente arraigadas à sociedade e às instituições, de tal forma que, na maioria das vezes, as tentativas acabam por reafirmar o que pretendem combater. Sendo assim, aproximar currículo e pobreza exige uma crítica radical às percepções de conhecimento, cultura, racionalidade e progresso, que culpabilizam os coletivos empobrecidos por sua condição.

Nessa visão do conhecimento e da cultura predominante nos currículos, não há espaço para articulação entre currículo e pobreza, mas apenas para ignorar os pobres como fechados no ponto zero ou na outra margem. Os currículos limitam-se a manter os pobres desde crianças na escola infantil, em um permanente exercício de cobrança de percursos exitosos que levam a processos de avaliação rigorosos, segregadores e reprovadores. Além disso, levam as escolas a cumprir o papel de reprovar massivamente os pobres por, supostamente , “não terem cabeça para as letras”, por problemas mentais de aprendizagem, ou ainda por não incorporarem os valores de trabalho, estudo, sucesso e persistência necessários para entrar no progresso e saírem do círculo da pobreza. Essa visão moralizante da pobreza é incorporada pela cultura escolar, criando o ambiente em que socializa a infância-adolescência pobre.