Se entendemos que a escola é um espaço de socialização de valores e identidades, a questão que mais se salienta é: como dialogar com os processos e vivências socializadoras da pobreza? Se essas experiências da pobreza são tão fortes como experiências sociais, culturais, dignas-indignas, de que forma marcam as identidades, os valores, os saberes dos educandos(as) que chegam às escolas? Que identidades esses sujeitos constroem nas vivências cruéis da pobreza e nos movimentos de reação que produzem?
Essas são perguntas que se lançam às instituições escolares e aos currículos que não têm dado a devida centralidade às vivências da escolarização como socializadoras, formadoras ou deformadoras de identidades sociais, étnicas, raciais, de gênero etc.; e que, sobretudo, não têm reconhecido os processos socializadores que crianças, jovens e adultos em contextos empobrecidos experienciam. Além disso, não é temerário reconhecer que, na cultura política e pedagógica, a visão que se tem dos processos de socialização da pobreza é, predominantemente, negativa.
Em vista disso, para a escola, a docência, as teorias pedagógicas e os currículos, levar em consideração esse caráter socializador das vivências da pobreza pode ter um significado extremamente relevante: restituir a sua função formadora e educativa. Entretanto, isso não pode reduzir-se à seleção de conhecimentos sobre a pobreza a serem trabalhados nos processos de ensino-aprendizagem. É necessário, ao contrário, que sejam questionadas as funções socializadora e formadora que o currículo, a pedagogia e a docência têm no acompanhamento dos processos de formação-deformação e humanização-desumanização desses milhões de sujeitos cujas vivências estão submetidas à pobreza.
A presença dessas infâncias-adolescências, cuja dignidade é roubada pela condição de pobreza extrema que vivenciam, obriga as escolas, os currículos e as teorias pedagógicas a saírem do reducionismo perpetuado pelos processos de ensino-aprendizagem, os quais se pautam, principalmente, pela lógica da produtividade e pela homogeneização dos sujeitos. Essas crianças e jovens exigem a reconstituição das funções educadora e formadora sobre as quais a pedagogia construiu sua identidade histórica desde suas origens. Diante disso, surge a questão: de que modo articular o direito desses indivíduos ao ensino-aprendizagem dos conhecimentos e da cultura com o direito à dignidade que deles(as) foi tomada pela condição de pobreza a que estão submetidos(as)?
Percebe-se que crianças e jovens sujeitados a vivências de pobreza, ao exigirem o direito a saber-se, têm levado as escolas a alargarem as formas de trabalhar os conhecimentos. Uma das maneiras de abordar a construção de suas identidades tem sido escolher e discutir obras de literatura, filmes, músicas etc. próximas de seus processos de vida. Observa-se que, nas letras de músicas produzidas por esses sujeitos, eles apresentam suas vivências de lugar com um destaque frequentemente agressivo. Esses indivíduos expressam também nessas narrativas a resistência a esses lugares, e questionam a produção desses espaços segregados aos quais são jogados(as). Sendo assim, essas marcantes vivências não podem ser ignoradas pela escola.
Esses sujeitos constroem suas identidades coletivas a partir de uma rica história de lutas por espaços de dignidade. É necessário incorporar essas histórias nos currículos para garantir o direito desses indivíduos a conhecimentos que os afetem verdadeiramente.