4. Pobreza e reprodução dos diversos em desiguais

Os(as) pobres, a parte da humanidade a ser humanizada?

Converter “subumanos(as)” em humanos(as) é uma de tantas formas de oprimir e submeter à miséria os coletivos diferentes. Esse processo pouco tem sensibilizado os estudos sobre o currículo nas sociedades pós-coloniais. Talvez isso ocorra porque, para levar em conta tais marcas e paradigmas que permeiam o currículo, teriam de superar a visão dos(as) pobres, dos(as) diferentes, como pertencentes àquela parte da humanidade que ainda não é humana, a parcela a ser humanizada e civilizada. Essa tem sido uma das formas mais radicais da produção das desigualdades e das representações dos(as) pobres: desfavorecidos(as) em humanidade, por isso pensados(as) e alocados(as) como primitivos(as), incultos(as), imprevidentes, irracionais, sem valores.

Pintura La romería de San Isidro (1823), de Francisco Goya, parte da série Pinturas Negras.

Esse modo de representação dos Outros tem marcado as concepções de sua educação. As políticas e programas de educação dos(as) diferentes carregam essa inferiorização tão radical: por, supostamente, não terem atingido a humanidade em seu estado pleno, a tarefa passa a ser torná-los(as) humanos. A pedagogia moderna está impregnada desse pensamento.

Na modernidade, a humanidade não se concebe sem uma subumanidade. “A negação de uma parte da humanidade é sacrificial à medida que constitui a condição para que a outra parte da humanidade se afirme enquanto universal” (SANTOS; MENEZES, 2009, p. 30-31). Dois pensadores anticolonização e antiopressão, Frantz Fanon, em Os condenados da Terra, e Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido8, colocaram com lucidez esse tenso jogo entre a negação da humanidade aos(às) colonizados(as) e oprimidos(as) para a outra parte da humanidade se afirmar universal.

Boaventura de Sousa Santos (2009) prossegue recordando que essa realidade é tão verdadeira hoje como era no período colonial. O pensamento moderno ocidental (poderíamos incluir o pensamento educacional e curricular) continua operando mediante linhas abissais que dividem e separam o mundo humano do subumano, de tal forma que os princípios de humanidade não são efetivados para todos(as). Isso fica evidente com as desumanizações sexuais, sociais, territoriais, étnicas e raciais, ou mesmo em forma de pobreza, violência, nova escravidão, trabalho e prostituição infantil etc.

No entanto, os(as) relegados(as) a essa condição reagem à divisão artificialmente criada, repudiando a ideia de um protótipo universal, alcançado por meio da educação, que delimita as fronteiras de humanidade. Ao questionar o pensamento moderno, a pedagogia moderna e sua divisão em humanos(as) e subumanos(as), os grupos pobres organizados estão tocando no núcleo do pensamento pedagógico e curricular mais sensível, estão apontando a urgência de se reestruturar os currículos e o pensamento pedagógico, repensando a visão dos(as) diferentes como desiguais e inferiores, a serem promovidos(as) à “maioridade” pela educação.

Percebemos que há progressos na perspectiva do reconhecimento da diversidade de representações, subjetividades, mentalidades, rituais e práticas simbólicas a serem incorporadas aos programas curriculares; porém, não podemos esquecer que a relação política de expropriação violenta das culturas fez e ainda faz parte das estruturas de poder, dominação e subordinação. Toda relação intercultural é política.

Os próprios grupos segregados repolitizam e ressignificam as confrontações e resistências no campo da diversidade cultural. Através dessa dinâmica, eles nos levam a refletir sobre como os processos de produção da diferença em desigualdade se materializam nas relações sociais e políticas: o modo como as culturas, os valores e as identidades coletivas desses grupos foram silenciados e segregados, inclusive nos currículos, e como os direitos a territórios, a terras e à produção da vida lhes foram negados.

Articular os currículos e as políticas educativas a políticas de diferenças supõe o reconhecimento dessas diversidades. Isso exige que os currículos se contraponham à transformação das diferenças em desigualdades, que ao menos o pensamento educacional e a lógica curricular não legitimem a negação aos(às) diferentes de sua condição de humanidade plena, sem hierarquias e graus de humanidade por diferenças de gênero, raça, classe, etnias e território. 

Durante este curso, você perceberá um esforço em deslocar os olhares sobre a pobreza e a educação. Serão questionadas visões que depositam as causas da pobreza em supostas incapacidades morais e de trabalho dos(as) pobres, bem como se chamará a atenção para os impactos dessas visões no processo educativo. Além disso, será destacado que a pobreza precisa ser considerada em termos políticos e sociais na gestão, nas práticas educacionais e nos currículos, o que nos exige a consideração das vivências reais dos sujeitos – individuais e coletivos – empobrecidos. Para tal empreitada, é fundamental perceber, antes de tudo, nossa própria posição, ou seja, de onde falamos e o que percebemos a partir desse espaço.

 

Entrevista com o autor - Encerramento do módulo

 
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