3. Desigualdade, educação e cidadania

Pobreza e capabilidades

Iniciamos esta seção citando, mais uma vez, Jessé Souza (2009, p. 42 et seq.): 

No passado, o pertencimento à família certa e à classe social certa dava a garantia, aceita como tal pelos dominados, de que os privilégios eram “justos” porque espelhavam a “superioridade natural” dos bem-nascidos. No mundo moderno, os privilégios continuam a ser transmitidos por herança familiar e de classe [...], mas sua aceitação depende de que os mesmos “apareçam”, agora, não como atributo de sangue, de herança, de algo fortuito, portanto, mas como produto “natural” do “talento” especial, como “mérito” do indivíduo privilegiado. [...] Nesse sentido, podemos falar que a ideologia principal do mundo moderno é a meritocracia.

Souza (2009) ressalta como essa ideologia, para funcionar, precisa silenciar qualquer tipo de determinação social. Isola, por isso, o indivíduo do seu contexto socioeconômico, atribuindo-lhe, desse modo, a responsabilidade exclusiva (o mérito ou o demérito) pelo seu sucesso (ou fracasso) na educação e no trabalho, bem como pela sua posição na sociedade. O mito do mérito individual depende, então, do fato de isolar o indivíduo da sociedade, como se tudo o que o ele alcança na sua vida não dependesse das possibilidades que a sociedade lhe oferece26.

Ao falar aqui em possibilidades, não nos referimos somente às condições objetivas externas que permitem a um sujeito, por exemplo, viver em segurança, receber uma educação pública gratuita, contar com um sistema de saúde público e gratuito, dispor de infraestruturas que lhe permitem exercer sua profissão, etc., mas também às condições intersubjetivas que dependem da cooperação das outras pessoas, dos outros membros da sociedade, sem os quais não conseguiria literalmente sobreviver, e às condições subjetivas, isto é, às capacidades e habilidades que consegue desenvolver graças à sociedade. Este último ponto merece ser explicado e, para tanto, embasamo-nos na teoria das capabilidades27, elaborada por Amartya Sen e Martha Nussbaum. Trata-se de uma teoria útil para entender de que maneira políticas públicas influenciam concretamente a vida das pessoas, por isso ela é utilizada frequentemente28 para a avaliação de tais políticas.

--
 
 

Ora, em que sentido essa teoria pode nos ajudar a enfrentar a questão da pobreza? Claramente, é possível descrever a situação dos(as) pobres no Brasil, assim como ela nos foi apresentada acima, em termos de funcionamentos e capabilidades. Em relação a todos os pontos levantados – da má nutrição à vergonha, da renda escassa ou nula à exclusão política –, é possível identificar uma série de funcionamentos valiosos – por exemplo, estar adequadamente nutrido(a), possuir autoestima, participar ativamente da vida política – que pressupõem a presença de certas capabilidades. É possível, inclusive, avaliar políticas públicas de combate à pobreza com base na sua eficácia em criar capabilidades. Para tanto, é necessário considerar os bens a serem distribuídos por elas (dinheiro, como no caso do PBF; infraestrutura, como no caso do Programa Luz Para Todos; assistência médica, como no caso do Programa Mais Médicos, suporte profissional, etc.) e levar em conta os “fatores de tradução”29 que permitem “traduzir” tais bens em capabilidades reais. 

Não se trata, contudo, simplesmente de encontrar nessa teoria um instrumento para descrever, de nova maneira, a situação dos(as) pobres. O ponto central é, antes, o fato de que tal teoria nos permite enxergar essa situação em termos de privação ou falta de liberdade. Exatamente por isso, Sen fala, entre outras coisas, em “liberdade para viver em uma atmosfera livre de epidemias” ou em “estar livre da fome e das enfermidades" (SEN, 2008, p. 114 et seq.) e conclui:

Quando avaliamos, ao redor do mundo, as desigualdades na capacidade de escapar das doenças que não são inevitáveis, ou da fome que pode ser evitada, ou da morte prematura, não estamos examinando apenas diferenças no bem-estar, mas também nas liberdades básicas que valorizamos e apreciamos (SEN, 2008, p. 118).

Convém lembrar que um indivíduo se torna mais livre à medida que aumenta o leque de opções entre as quais pode escolher – e isso compreende tanto os vários possíveis funcionamentos como o conjunto de capabilidades necessárias para eles. Pode parecer estranho ligar o tema da liberdade ou da autonomia àquele da pobreza e da desigualdade, mas isso acontece somente porque estamos acostumados(as) a separar as liberdades e os direitos formais, por um lado, das possibilidades concretas de exercício de tais liberdades e direitos, por outro. Da mesma maneira, estamos habituados(as) a pensar que qualquer pessoa é livre para praticar qualquer tipo de ação quando não há nenhum obstáculo material ou jurídico que o impeça. As coisas, todavia, são muito mais complexas.

Voltemos aos exemplos mencionados em outras seções: crianças provenientes de famílias desestruturadas, malnutridas, morando em casebres ou em moradias precárias, etc. Poder-se-ia afirmar que essas crianças podem se decidir, livremente, a dedicar-se seriamente aos estudos e alcançar bons resultados e que, quando isso não acontece, a responsabilidade seria, portanto, unicamente delas?

Vejamos só: alcançar bons resultados na escola é um funcionamento valioso que depende de um conjunto de capabilidades entre as quais estão, com certeza, inteligência, aplicação, disciplina e perseverança, que são qualidades individuais. Além delas há, no entanto, condições objetivas, como a presença de uma escola com infraestrutura apropriada e com professores(as) eficientes; a possibilidade de dispor de um lugar onde estudar com tranquilidade; o apoio de pais que prezam pelo estudo e podem encorajar ou até ajudar a criança a fazer seus deveres, etc. Mesmo as qualidades individuais, por vezes, só podem ser desenvolvidas a partir de condições objetivas: pensem nas consequências negativas da má nutrição sobre as capacidades de aprendizagem e memória, mencionadas no capítulo anterior.

Figura produzida pela Equipe de Criação e Desenvolvimento, com base na fotografia
de Renato Targa (2007) e texto dos autores.

Ao mesmo tempo, ao introduzir a ideia dos “fatores de tradução”, a teoria das capabilidades mostra que, para solucionar os problemas ligados à pobreza, não é suficiente distribuir bens –  para ficarmos em nosso exemplo: abrir bibliotecas, melhorar a infraestrutura escolar, qualificar os(as) professores(as), etc. –, mas deve ser levada em conta a capacidade dos beneficiários da distribuição de transformar, de fato, tais bens em capabilidades. Como todo educador sabe perfeitamente, de nada adianta distribuir livros a estudantes sem se preocupar em estimulá-los(as) e segui-los(as) no processo de leitura.

A responsabilidade dos(as) educadores(as) na “tradução” dos meios oferecidos pela escola – e que podem ser considerados como bens distribuídos aos(às) estudantes – em capabilidades para funcionamentos valiosos é, com efeito, enorme. Naturalmente, os(as) próprios educadores(as) devem dispor das capabilidades necessárias para realizar essa tarefa – por exemplo, serem não só qualificados(as), engajados(as), abertos(as), mas também receberem o reconhecimento e a estima de pais, estudantes e autoridades públicas, tanto quanto serem adequadamente remunerados(as).

Nesse sentido, é possível dizer que os(as) educadores(as) podem promover a liberdade de seus(suas) alunos(as), uma vez que podem, por intermédio da educação, aumentar seu conjunto de capabilidades – o que não deve ser confundido com um simples processo de capacitação: aqui, não se trata somente de habilidades e saberes técnicos específicos, mas também de um leque de opções para funcionamentos valiosos, como ser um(a) cidadão(ã) ativo(a), elaborar autonomamente um plano de vida, escolher uma profissão condizente aos próprios talentos e aos próprios desejos, etc. Em suma, a ideia do processo educativo como processo de emancipação se enriquece, assim, de mais uma dimensão.